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Банкир-анархист и другие рассказы / O banqueiro anarquista e outros contos - Фернандо Пессоа

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Crónica decorativa II

Soube hoje uma coisa que me desgostou — que a Pérsia realmente existe. Eu julgava que a Pérsia era apenas o nome especial que se dava à beleza de certos tapetes. Agora parece que um explorador moderno afirma a sua existência. Se bem que os exploradores modernos sejam, como em geral todos os homens de ciência, susceptíveis de erro mais que os outros homens, disse-me há pouco um jornalista que o facto merece crédito. A ser verdade (eu ainda hesito) resta saber que nome se vai dar de hoje em diante aos tapetes persas. E a poesia persa — a propósito — que nova denominado vai ter?

Serve-me este assunto de tema para expor certas opiniões que há muito tempo uso sobre o modo extraordinariamente intenso como, de há tempo para cá, a ciência grassa e o espírito científico nos ataca. Se daqui a pouco o pólo sul vai também desatar a ser real, não sei a que ponto chegaremos. Breve existirá tudo e não está longe o dia, talvez, em que basta sonharmos uma rainha medieval para ela nos entrar, contemporânea e anatomizável, pela porta dentro, depois de bater à realidade da campainha e se fazer anunciar pela presença beiroa da criada.

Afirmou-me um amigo meu, o qual, por culto, me merece um crédito dubitante, que lera em livro de Guyau que um Keats brindara coisas más para a memória de Newton porque ele fizera qualquer coisa como descobrir leis que tinham que ver com os astros. Se ponho certo vago na minha descrição é porque não tenho a mínima ideia do que Newton fez ou descobriu. O facto, agora, é o brinde de Keats. Esse brinde contém uma intuição justa. A aplicação é que é péssima. Não fez mal a ninguém descobrir as leis dos astros. Eles sempre foram visíveis. E a sua boa qualidade de serem longínquos, não lha tirou a descoberta de Newton, fosse ela qual fosse; e, de mais a mais, essa descoberta, sendo matemática e portanto totalmente com feição de falsa, fez, do mal inevitável, o menos possível.

Desviei-me um parágrafo do assunto, para poder ver bem o que me convinha ter sempre pensado dele. Estou agora de posse da ideia de que sempre concordei com a essência do brinde de Keats. É necessário, pondo o problema no campo político e social (aqui vem a minha originalidade), estudar como se deve coibir e disciplinar utilmente a acção da investigação, da exploração e da ciência em geral.

Que a existência de laboratórios seja uma mancha sobre a nossa civilização — ninguém de ânimo firme o nega, ou também que as perigosas facilidades dadas ao trânsito por térras secularmente entregues à tradicional actividade dos salteadores, e mares donde o carácter revolucionário da civilização moderna baniu a instituição dos piratas, seja um dos mais licenciosos resultados da Revolução Francesa e do espírito anarquista em geral. Mas, em lugar de se atentar para estas deficiências de disciplina e de ordem que repugnam tanto ao espírito positivo como ao são critério expresso na máxima de São Tomás de Aquino — eadem res generatur et conservantur in esse —, o exagerado amor ao sensacionalismo da vida moderna, e a doentia tendência para acreditar ñas informações dos jornais têm favorecido, sem que alguém pense em as dever evitar, o desenvolvimento do espírito científico.

Por ora as consequências da fraqueza das instituições democráticas têm sido notadas. Salvo o facto — contestável, de resto, manda a verdade que se diga — da descoberta do pólo norte, e agora este, recentíssimo, da afirmação da existência da Pérsia, poucas têm sido as consequências notáveis. Mas se repararmos o que esses dois factos já por si representam, de chofre nos ocorrerá qual o perigo crescente e assolapado que nos confronta e breve, visível e inevitável, se erguerá diante de nós.

Urge para já a constituição de uma Liga Anticientífica onde se defendam os impreteríveis direitos que as térras desconhecidas têm de permanecer desconhecidas, e os países inexistentes de não verem de um día para o outro violada a sua neutralidade e forçados a entrar ñas campanhas da realidade. Nem se pode dizer que isto esteja fora dos bons princípios liberáis. O partido liberal inglês — partido representativo, mais do que nenhum, do liberalismo — teve quase sempre por doutrina (salvo, é claro, nos casos de utilidade nacional), por inviolável, a vida e instituições dos outros países. E ao mesmo tempo, esta doutrina é a sã e pura atitude conservadora, dado que o que se pretende defender é a Tradição, a Ordem, a Disciplina Social.

Na nossa política tem-se visto recentemente o resultado desta táctica revolucionária. Um grupo de dementados tem recentemente insistido pela implantação da monarquia no nosso país. Atentam assim, de ânimo leve, contra o carácter tradicional da monarquía, que é o de existir belamente e entusiasticamente — e isso só se pode dar estando ele sempre no passado e por isso acima das paixões e das flutuações do sentimentalismo humano. E atentam contra o sagrado princípio da Tradição, que exige e sempre exigiu que a Tradição ficasse no passado, sem que o presente lhe tocasse ou a atingisse, servindo-se dela.

É desolador este estado de coisas. Ninguém pensa para onde vai, o que será o dia de amanhã. Para alguns ele deve ser ontem. Assim passam, entre dúvidas e tédios, os nossos tristes e cansados dias.

Impõe-se uma reacção enérgica e disciplinada. Por toda a parte o espírito revolucionário e o excesso de espírito científico — ou, melhor, o espírito científico indisciplinado — pretendem avassalar a realidade. Ontem foi o pólo norte declarado descoberto. Todo o conservador estremeceu. Hoje é a Pérsia declarada existente. Todo aquele para quem a Tradição representa mais alguma coisa de que um nome sentiu as lágrimas chegarem-lhe aos olhos. Não pesou nada na balança dos escrúpulos dos cientistas a beleza dos poemas de um Hafiz, de um Rumi, de um Omar Khayyam. Foi em vão que estes grandes nomes do Passado tornaram grande e irreal e falsa a sua Pátria. Nada é sagrado para os demagogos de hoje. Que mais pretendem? Quanto mais váo ousar? Só lhes falta provar que Cristo foi uma realidade, que existiu o Império Romano, que as lutas políticas da Grécia tiveram lugar realmente. Que mais querem, os novos bárbaros?

Este grito é, bem o sei, lançado aos ventos. Nenhuma Liga Anticientífica se formará. Ninguém fará soar a sua voz de acordo com a minha contrta a invasão destes desintegradores da sociedade. Ficará tudo entregue aos «progressos» do espírito «científico». Hoje não podemos ter tapetes persas. Já tínhamos perdido as paisagens polares. Amanhã irão as sedas da China, as cutelarias do velho Japão. Assim progressivamente escassearão as subsistências e dentro em breve, absorvidos pela animalidade, ver-nos-emos obrigados a viver na terra como qualquer animal, a ter saúde como qualquer larva, a acreditar na vida como uma patagónia ou um cherokee.

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