Банкир-анархист и другие рассказы / O banqueiro anarquista e outros contos - Фернандо Пессоа
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«Eu discutí a situação comigo mesmo. Repara tu, dizia eu para mim, que nascemos pertencentes à espécie humana, e que temos o dever de ser solidários com todos os homens. Mas a ideia de «dever» era natural? De onde é que vinha esta ideia de «dever»? Se esta ideia de dever me obrigava a sacrificar o meu bem-estar, a minha comodidade, o meu instinto de conservação e outros meus instintos naturais, em que divergía a acção dessa ideia da acção de qualquer ficção social, que produz em nós exactamente o mesmo efeito?
«Esta ideia de dever, isto de solidariedade humana, só podia considerar-se natural se trouxesse consigo uma compensação egoísta, porque então, embora em princípio contrariasse o egoísmo natural, se dava a esse egoísmo uma compensação, sempre, no fim de contas, o não contrariara. Sacrificar um prazer, simplesmente sacrificá-lo, não é natural; sacrificar um prazer a outro, é que já está dentro da Natureza: é, entre duas coisas naturais que se não podem ter ambas, escolher uma, o que está bem. Ora que compensação egoísta, ou natural, podia dar-me a dedicação à causa da sociedade livre e da futura felicidade humana? Só a consciência do dever cumprido, do esforço para um fim bom; e nenhuma destas coisas é uma compensado egoísta, nenhuma destas coisas é um prazer em si, mas um prazer, se o é, nascido de uma ficção, como pode ser o prazer de ser ¡mensamente rico, ou o prazer de ter nascido em uma boa posição social.
«Confesso-lhe, meu velho, que me vieram momentos de descrença… Senti-me desleal à minha doutrina, traidor a ela… Mas em breve passei sobre tudo isto. A ideia de justiga cá estava, dentro de mim, pensei eu. Eu sentia-a natural. Eu sentia que havia um dever superior à preocupação só cá do meu destino. E fui para diante na minha intenção.
— Não me parece que essa decisão revelasse uma grande lucidez da sua parte… Você não resolveu a dificuldade… Você foi para diante por um impulso absolutamente sentimental…
— Sem dúvida. Mas o que lhe estou contando agora é a história de como me tornei anarquista, e de como o continuei sendo, e continuo. Vou-lhe expondo lealmente as hesitações e as dificuldades que tive, e como as venci. Concordo que, naquele momento, venci a dificuldade lógica com o sentimento, e não com o raciocinio. Mas você há-de ver que, mais tarde, quando cheguei à plena compreensão da doutrina anarquista, esta dificuldade, até então lógicamente sem resposta, teve a sua solução completa e absoluta.
— É curioso…
— É… Agora deixe-me continuar na minha história. Tive esta dificuldade, e resolvi-a, se bem que mal, como lhe disse. Logo a seguir, e na linha dos meus pensamentos, surgiu-me outra dificuldade que também me atrapalhou bastante.
«Estava bem — vamos lá — que estivesse disposto a sacrificar-me, sem recompensa nenhuma propriamente pessoal, isto é, sem recompensa nenhuma verdadeiramente natural. Mas suponhamos que a sociedade futura não dava em nada do que eu esperava, que nunca havia a sociedade livre, a que diabo é que eu, nesse caso, me estava sacrificando? Sacrificarme a uma ideia sem recompensa pessoal, sem eu ganhar nada com o meu esforgo por essa ideia, vá; mas sacrifícar-me sem ao menos ter a certeza de que aquilo para que eu trabalhava existiría um dia, sem que a própria ideia ganhasse com o meu esforço — isso era um pouco mais forte… Desde já lhe digo que resolví a difículdade pelo mesmo processo sentimental por que resolví a outra; mas advirto-o também que, no mesmo modo que a outra, resolví esta pela lógica, automáticamente, quando cheguei ao estado plenamente consciente do meu anarquismo… Você depois verá… Na altura do que lhe estou contando, saí-me do apuro com uma ou duas frases ocas. «Eu fazia o meu dever para com o futuro; o futuro que fizesse o seu para comigo»… Isto, ou coisa que o valha…
«Expus esta conclusão, ou, antes, estas conclusões, aos meus camaradas, e eles concordaram todos comigo; concordaran! todos que era preciso ir prà frente e fazer tudo pela sociedade livre. É verdade que um ou outro, dos mais inteligentes, ficaram um pouco abalados com a exposição, não porque não concordassem, mas porque nunca tinham visto as coisas assim claras, nem os bicos que estas coisas tém… Mas enfím, concordaram todos… Iríamos todos traba-lhar pela grande revolução social, pela sociedade livre, quer o futuro nos justifícasse, quer não! Formámos um grupo, entre gente certa, e começãmos uma grande propaganda — grande, é claro, dentro dos limites do que podíamos fazer. Durante bastante tempo, no meio de difículdades, embrulhadas, e por vezes perseguições, lá fomos trabalhando pelo ideal anarquista.
O banqueiro, chegado aqui, fez uma pausa um pouco longa. Não acendeu o charuto, que estava outra vez apagado. De repente teve um leve sorriso, e, com o ar de quem chega ao ponto importante, fitou-me com mais insistência e prosseguiu, clarificando mais a voz e acentuando mais as palavras.
* * *
— Nesta altura — disse ele —, apareceu uma coisa nova. «Nesta altura» é modo de dizer. Quero dizer que, depois de alguns meses desta propaganda, comecei a reparar numa nova complicação, e esta é que era a mais séria de todas, esta é que era séria a valer…
«Você recorda-se, não é verdade? daquilo em que eu, por um raciocínio rigoroso, assentei que devia ser o processo de acção dos anarquistas… Um processo, ou processos quaisquer, pelo qual se contribuísse para destruir as ficções sociais sem, ao mesmo tempo, estorvar a criação da liberdade futura, sem, portanto, estorvar em coisa nenhuma a pouca liberdade dos actuais oprimidos pelas ficções sociais; um processo que, sendo possível, criasse já alguma coisa da liberdade futura…
«Pois bem: uma vez assente este critério, nunca mais deixei de o ter presente… Ora, na altura da nossa propaganda em que lhe estou falando, descobri uma coisa. No grupo de propaganda — não éramos muitos; éramos uns quarenta, salvo erro — dava-se este caso: criava-se tirania.
— Criava-se tirania?… Criava-se tirania como?
— Da seguinte maneira… Uns mandavam em outros e levavam-nos para onde queriam; uns impunham-se a outros e obrigavam-nos a ser o que eles queriam; uns arrastavam outros por manhas e por artes para onde eles queriam. Não digo que fizessem isto em coisas graves; mesmo, não havia coisas graves ali em que o fizessem. Mas o facto é que isto acontecía sempre e todos os dias, e dava-se não só em assuntos relacionados com a propaganda, como fora deles, em assuntos vulgares da vida. Uns iam insensivelmente para chefes, outros insensivelmente para subordinados. Uns eram chefes por imposição; outros eram chefes por manha. No facto mais simples isto se via. Por exemplo: dois rapazes iam juntos por uma rúa fora; chegavam ao fim da rúa, e um tinha que ir para a direita e outro para esquerda; cada um tinha conveniência em ir para o seu lado. Mas o que ia para a esquerda dizia para o outro «Venha você comigo por aqui»; o outro respondia, e era verdade: «Homem, não posso; tenho que ir por ali» por esta ou aquela razão… Mas afinal, contra sua vontade e sua conveniência, lá ia com o outro para a esquerda… Isto era uma vez por persuasão, outra vez por simples insistência, uma terceira vez por um outro motivo qualquer assim… Isto é, nunca era por uma razão lógica; havia sempre nesta imposição e nesta subordinação qualquer coisa de espontâneo, de como que instintivo… E como neste caso simples, em todos os outros casos; desde os menos até aos mais importantes… Você vê bem o caso?